Quando a determinação vence a opressão: Miroslav Tichy.

Esses dias, durante minhas pesquisas pela Grande Rede, me deparei com uma imagem a princípio surreal. Olhei bem, fiquei intrigado e depois de alguns segundos pude perceber o que estava sendo exibido na pequena tela do aparelho. Uma câmera fotográfica! Sim, isso mesmo, uma câmera fotográfica feita com sucata. Latas, tubos de papel ou plástico, vidro, carretéis de linha, barbante, elásticos e o que mais a criatividade pode proporcionar.

Mais interessante e também chocante é saber que não foi somente porque não tinha mais o que fazer, que se empenhou em construir suas próprias câmeras e instrumentos. Tichy um cidadão muito culto, estudou na Escola de Belas Artes de Praga, produziu desenhos e pinturas. Em agosto de 1968, após a invasão russa que pretendia acabar com a reforma social-democrata liderada por intelectuais e o chefe de estado Alexander Dubcek, imortalizada com o nome de Primavera de Praga, a Tchecoslováquia tornou-se um país ocupado. A propriedade privada foi extinta. Por volta de 1972, Tichy foi considerado pelo regime vigente na época um subversivo, uma pessoa estranha, com problemas mentais. Foi expulso de seu estúdio de pintura e suas obras destruídas. Foi internado em várias clínicas psiquiátricas e por muitos anos ficou preso. Após uma concessão de liberdade dada pelo governo, vagando pelas ruas, fixou-se em uma pequena casa.

Miroslav em sua casa

Seu espírito livre, contestador e sua ferrenha intenção em não colaborar com o “sistema”, o fez executar seu trabalho com o que tinha disponível então: sucata. Ampliador, lentes e várias câmeras foram por ele artesanalmente e surpreendentemente construídos.

A mulher, foi exaustivamente retratada em suas centenas de fotos capturadas nas ruas, bordéis, piscinas públicas nas mais diferentes situações, na pequena cidade tcheca de Kyjov, onde vivia.

Pernas, braços, silhuetas, corpos inteiros em situações cotidianas, num café, nas ruas, sentadas de pé, de costas, tomando sol, lendo, e as vezes introspectivas envoltas nos próprios pensamentos. Essas mulheres, ao contrário das modelos profissionais, muitas vezes não tomavam conhecimento de Tichy, e outras vezes reclamavam.

Muitas complacentemente se deixavam fotografar pois ele era tido como um excêntrico, um louco, por causa de seus trajes que mais pareciam andrajos e seu “equipamento”, feito com caixas de papelão, fitas adesivas, tampas de garrafa e uma infinidade de peças e objetos.

As “modelos” e outras pessoas do local achavam que ele somente fingia fotografar, como uma criança que pega uma caixinha qualquer e sai “fotografando” tudo em seu caminho.

Mas essa forma de trabalho muito peculiar, rendia cerca de 100 fotos por dia, que eram reveladas num cantinho da casa muito simples, que mais parecia uma descoberta arqueológica. Comprava seus filmes e químicos para revelação com uma pequena pensão por invalidez que recebia.

Roman Buxbaum

Por volta de 1980, Roman Buxbaum, um antigo amigo de Tichy, retornou de um exílio da Suíça e sua família tinha vários desenhos e pinturas de Tichy. Buxbaum descobriu os trabalhos e os equipamentos fotográficos ainda guardados em segredo. Em um esforço para tornar público esse acervo, conseguiu expor suas fotos e equipamentos em muitas galerias ao redor do mundo. Criou também a Fundação Tichy Ocean. Nosso personagem teve reconhecimento mundial e morreu em 2011, de causas naturais, com 84 anos, época em que teve amparo de sua família, em seus últimos dias.

Um interessante documentário curta-metragem, “Tarzan Retired”, feito por Buxbaum, conta um pouco da vida de Tichy, seus trabalhos, seus objetos outrora mantidos em segredo, agora disponibilizados ao público. Vale a pena ver. Acesse este documentário aqui, ou assista diretamente abaixo.

Curta metragem de Roman Buxbaum: Tarzan Retired (legendas em inglês)

Quando se tem um sonho, um objetivo na vida, encontra-se uma forma de superar os obstáculos e seguir em frente. Tenho várias referências na área de fotografia. Pessoas simples com equipamentos simples, como gênio Henry Cartier-Bresson, sempre foram minhas referências. Mas Miroslav vai ficar eternamente na minha lembrança e sempre o citarei como referência de obstinação, lealdade aos seus princípios, força de vontade, objetivo e amor ao que faz.

Referências:

OBVIOUS – Marginal, fotógrafo e voyeur

Wikipedia – Miroslav Tichy

“Um dia conto tudo…”

Wikipedia – Invasão da Tchecoslováquia

Gazeta do Povo – Museu de Nova Iorque – Mostra Miroslav Tichy

Wikipedia – Alexander Dubcek – Chefe de estado da antiga Tchecoslováquia

Wikipedia – Primavera de Praga

Wikipedia – Henri Cartier-Bresson

O que é um ampliador?

4 respostas para “Quando a determinação vence a opressão: Miroslav Tichy.”

  1. Surpreendente!
    Para mim que sou completamente leiga em se tratando do mundo da fotografia, fiquei encantada com Miroslav e com a possibilidade de conhecê-lo por meio da sua escrita. Parabéns pelo artigo!

    Outra reflexão é como genialidade e loucura se misturam e como o sistema é cruel e eficaz em invisibilizar aquilo que é diferente e incomoda. Linda a história, mas não deixa de ser cruel 🥲

    1. Oiêê!! As vezes, por muito menos, acabamos por desistir de nossos projetos pessoais. Miroslav prova que tudo é possível!!!

    2. Obrigado pela leitura e comentário. Bjo!

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